Comentando o Fato
Jornal Jequié
06 a 12 -05 - 87
Descia a rua calmamente. Não se importava com os carros que subiam, buzinando ruidosamente. Nem ao menos se incomodou com o bando de garotos que, ao sair da escola o encontrou em o seu passeio matinal. Calmamente descia a rua, olhando para um lado e para o outro, parando por alguns instantes, voltando a seguir ao seu lento passear.
Era o dono da rua e, se não o fosse, parecia sê-lo. Pouco se lhe dava algumas pedrinhas lançadas por dois garotões fardados com a farda do colégio! Eram estudantes e, como tais, pareceu-lhes comum o proceder.
Achegou-se para um lado da rua onde existia um depósito de lixo. Conhecedor do local e do cardápio, freguês assíduo, demorou-se ali preciosos minutos, bisbilhotando, revirando o conteúdo daquele depósito já meio enferrujado e furado. Despreocupado, apanhou algumas coisas que lhe serviam de alimentando, abandonando o local.
Voltou ao meio da rua, continuando o seu desfile, Foi-se aproximando do primeiro canteiro onde se encontra encravado um pedestal e sobre esse um busto do atual Senador da República e ex-governador da Bahia. A meninada – a essa altura mais numerosa, - brincava com ele, correndo ao seu lado, batendo-lhe com galhos das árvores por ela mesma quebrados.
No canteiro, sofreu terrível decepção: ali não havia nada que lhe pudesse amenizar o cansaço, a fome e sede. Apenas o pedestal e sobre esse, o busto. Nada mais.
Ficou olhando os carros em o seu desfile diário. Sacudiu a cabeça diante do buzinar azucrinante dos motoristas nervosos e mal-educados. Desceu do canteiro, sem antes deixar de olhar o busto entronizado e, calmamente, voltou ao meio da rua, agora subindo. Antes, ele descia.
Chamaram-lhe pelo nome e ele nem ligou. Jogaram-lhe pedras e ele nem apressou no passo. Calmamente voltou ao depósito de lixo anteriormente visitado e vasculhou-o mais devagar.
Comeu de tudo. Depois de saciar a fome, ainda mastigando voltou ao meio da rua e subiu, com certeza, para a sua casa.
Foi isso pelo menos o que deduzi, vendo aquele burro velho, ferido no lombo, pernas trôpegas, olhos cansados. Ele é um passeador contumaz da minha rua. É pena que os meninos das escolas ainda não aprenderam a ama-lo e os motoristas, respeita-lo
Bastam-lhe nos maus tratos que lhe aplica o dono, pois se assim não fosse, não estaria com fome, ferido no lombo, comendo lixo. Burro velho, puxador de carroça, cansado de tanto trabalho, deve merecer um lixo melhor, mais aburguesado, mais nutritivo. O da minha rua é lixo de proletário, sem vitaminas nem proteínas. Já não lhe bastou à decepção de não encontrar gramas e flores no canteiro do senador?
Gosto de vê-lo andando na rua. Calmo, quase sonolento, com ares de quem não liga para nada. Também, pudera! Importar com o amanhã, se o futuro do burro de carroça é continuar a comer lixo generosamente exposto nas ruas? Preocupar-se com o amanhã se a sua sina é servir de alvo para as pedras dos meninos das escolas e, depois, sem condições de trabalho, ser transformado em salsicha?
Por isso ele nem se incomoda com o buzinar dos motoristas que passam tirando “fino”. Estão com pressa? Que passem por cima...
Melhor para ele. Não sentirá mais fome e sede, não precisará mais recorrer ao lixo pobre da minha rua que, além de pobre é fedorento!
O que poderá preocupa-lo – se é que burro tem preocupação, - é ser preso pelos prepostos da Prefeitura e ser jogado no “curral do conselho”. Ali, coitado, nem lixo tem para comer.
Enquanto o burro retorna a casa, os meninos da escola passam carregando os galhos das árvores por eles quebrados. Galhos das poucas árvores da minha rua!
E, comigo, fica o questionamento: Qual o mais irracional? O burro velho que come lixo ou o menino da escola que quebra árvore e come pão?
E, assim pensando, começo a sentir saudades de uma porca velha que sempre acompanhada de seus leitõezinhos fazia, também, seu “Cooper” por minha rua. Será que já virou lingüiça?
Na passarela da rua onde moro, ela, a porca, tinha lugar de destaque por suas exuberantes tetas que balançavam acompanhando o seu gingado, cadenciado e dengoso e até mesmo sensual.
Mas, isso é assunto para outro comentário...
sábado, 1 de março de 2008
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